sábado, 5 de fevereiro de 2011

HONRA, ÉTICA E PRUDÊNCIA: OS FUNDAMENTOS ÉTICOS DA ATIVIDADE ACADÊMICA

HONRA, ÉTICA E PRUDÊNCIA: OS FUNDAMENTOS ÉTICOS DA ATIVIDADE ACADÊMICA

Faço uma postagem de um texto que publiquei originalmente no jornal Gazeta de Alagoas. Creio que a reflexão é importante nesse início de ano letivo.

"A antropologia da honra é tema pouco discutido no meio acadêmico. Menos discutida ainda é a relação entre honra e ética na vida acadêmica.  A ausência de uma reflexão mais aprofundada sobre o tema da honra e sua dimensão ética no âmbito da Antropologia Social deve-se, sobretudo, ao monopólio exercido pela Filosofia e pela Ciência Política no tratamento dessas questões. Como bem salienta Roberto Cardoso de Oliveira, uma vez envolta no seu compromisso com a investigação empírica, o que a afastaria da filosofia, e ciosa da noção de relativismo, que sempre embalou as pesquisas antropológicas, afastando-as da Ciência Política, a Antropologia Social relegou a um segundo plano o tema da honra[1]. Tal fato não implica necessariamente a inexistência de uma reflexão sobre o assunto, mas os estudos antropológicos conduzem à constatação de que, em termos comparativos e etnograficamente falando, a honra assume uma extensão bem maior do que aquela normalmente encontrada nos estudos realizados na própria sociedade do observador. Como um fenômeno sócio-cultural que não é exclusivamente ocidental, a honra pode ser analisada pela pesquisa etnográfica, revelando-se assim a multiplicidade de sentidos de que se pode revestir.
Essa multiplicidade de representações transforma a honra numa categoria própria de cada cultura em particular. Em sociedades de pequena escala, como os Kabyle argelinos, ou em sociedade complexas, a exemplo das sociedades mediterrâneas, categorias como honra e vergonha, ou desonra, são inerentes às próprias relações sociais, atuando como reguladoras sociais. Enquanto para os Kabyle “um homem honrado é aquele capaz de encarar os outros”[2], como ressaltado por Pierre Bourdieu, para as culturas mediterrâneas honra e vergonha constituem uma preocupação constante de todos os indivíduos, definindo a sua própria personalidade social. Prosper Merimée ilustra o tema com precisão, ao narrar o assassinato no menino Fortunato por seu próprio pai, Mateo Falcone. Em uma região da ilha da Córsega na qual os bandidos procurados tinham abrigo, Fortunato, então com dez anos de idade, recebe dinheiro para proteger o criminoso fugitivo Gianetto Sanpiero. Confrontado pelo chefe dos soldados perseguidores, Teodoro Gamba, Fortunato aceita como suborno um relógio de prata, delatando o esconderijo do albergado. Ao saber do ocorrido, Mateo Falcone leva Fortunato para a floresta e o mata com um tiro. Indagado por Josefa, sua esposa, sobre o que havia feito, Falcone responde de maneira lacônica: Justiça![3]

Diferentes sociedades representam a honra de maneiras distintas. A pesquisa antropológica revela a importância da honra, como categoria analítica, para as diversas culturas e grupos culturais, fato que em si já justificaria a investigação. No entanto, é no âmbito das relações acadêmicas que se efetivam nas instituições universitárias que o tema assume uma importância capital. Embora Roberto Cardoso de Oliveira afirme que as universidades brasileiras não são constituídas por uma única comunidade de interesses, e, por conseguinte, não se guiam por um sistema único de valores, com o que há de se concordar, resta evidente que a análise das relações de poder e da dimensão ética dessas relações não mais poderá estar adstrita apenas à ética docente, ou seja, não se pode resumir aos deveres e responsabilidades que permeiam a atividade acadêmica.
Explica-se: o espaço universitário, e aqui não se faz uma distinção entre instituições públicas e privadas, é composto de três agrupamentos sociais que se diferenciam a partir das funções que desempenham no âmbito da comunidade universitária. Os corpos docente, discente e administrativo atuam, hoje, em um cenário que se forma a partir das relações de poder e da dimensão política assumida pela ação de cada um desses atores institucionais. A hierarquização de funções atende a uma lógica de interesses, própria de cada um desses agrupamentos, que se insere em um jogo de disputa política e de poder realizado entre desiguais. Nesse contexto, a honra e o prestígio – que a ela é normalmente associado – nem sempre são lidos e percebidos de idêntica forma pelos diversos grupos que compõem a universidade, uma vez que cada um desses grupos orienta a sua conduta a partir de um sistema próprio de valores. 

Para o corpo administrativo, por exemplo, valores como o mérito acadêmico, que se materializa da atribuição de títulos e de dignidades acadêmicas, não serão necessariamente tidos como fundamentais. Isso não significa dizer que os funcionários e administradores não possuam uma noção de mérito e que não lhe associem o conceito de honra e prestígio, mas estes certamente não serão tipicamente acadêmicos. Os títulos acadêmicos conferidos aos professores, em atenção ao seu desempenho, e o mérito reconhecido aos estudantes pelos docentes, não fazem parte da cadeia de valores próprios do corpo de funcionários.
Desta forma, se se pode analisar a dimensão ética da atividade acadêmica, essa ética estaria adstrita, segundo Roberto Cardoso de Oliveira, à ética docente, uma vez que apenas os professores possuem uma careira a seguir nas universidades, estando os alunos de passagem, somente, pela instituição de ensino. Embora se saiba que a ética docente envolve “um quadro de moralidade no interior do qual tem lugar a conduta docente”,[4] o espaço universitário não está impermeável às influências e ingerências externas. Neste sentido, as “éticas” weberianas da convicção, que incita os indivíduos a agir segundo os seus próprios sentimentos, sem que sejam efetuadas referências às consequências dessa ação; e da responsabilidade, que interpreta as ações em termos de meios e fins, não se aplicariam apenas ao homem que possui uma vocação política, estendendo-se também aos que possuem vocação para a ciência. 
Luca Giordano, Alegoria da Prudência
Considerando-se as atuais relações de poder no âmbito das instituições universitárias e, em especial, a vulnerabilidade dessas instituições às interferências externas, essa eticidade deveria também ser estendida ao corpo discente e administrativo das universidades, e não apenas ao corpo de professores. O docente ideal seria, portanto, o resultado da conjunção entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade e a expressão máxima das três virtudes: a prudência ou phronésis grega – uma das quatro virtudes cardeais, ao lado da justiça, da temperança e da coragem –, o bom senso e a sabedoria. Ao lado do docente ideal, no entanto, dever-se-iam perfilar o administrador ideal e o discente ideal. Não se pretende aqui aplicar o conceito weberiano de tipo ideal, uma vez que os tipos ideais constituem conceitos teóricos e abstratos que se baseiam numa indução da realidade, embora não se possa negligenciar a utilidade desse recurso metodológico para a própria pesquisa antropológica. Pretende-se, no entanto, a partir do reconhecimento de que uma antropologia da honra possibilita a identificação de uma categoria analítica que permeia, ainda que de forma distinta, vários sistemas culturais, identificar uma filosofia moral que seja aplicada às relações humanas no âmbito da academia. Neste sentido, a abordagem antropológica cede espaço a uma discussão de matriz eminentemente filosófica. A dimensão ética da academia deveria constituir um círculo de proteção em torno do fazer acadêmico, de maneira a torná-lo impermeável às circunstâncias externas, às vontades alheias, aos humores do mercado e da política de classes, afirmando, assim, a independência e a capacidade de autodeterminação da própria academia.
A ética é um saber prático, ou seja, depende exclusivamente das ações humanas, nas quais não haverá dissociação entre o agente, a ação e sua finalidade, conforme a própria definição aristotélica de práxis, que se opõe à mera técnica. O sujeito ético ou moral não estará subordinado aos arroubos da vontade ou dos desejos de outrem, tampouco sucumbirá diante da tirania das paixões, obedecendo apenas à sua consciência sem, contudo, recair no equívoco do solipsismo. A vida ética, para a filosofia clássica, caracteriza-se pelo embate contínuo e perpétuo entre a razão e os apetites e desejos humanos. Nesse sentido, a ética consiste na educação do caráter para que se possam controlar as paixões e dominar os apetites e desejos, orientando a vontade do sujeito moral rumo à felicidade. O problema dessa concepção reside na identificação da conduta ética apenas nas ações visíveis. Para Aristóteles, “nossas disposições morais nascem de atividades semelhantes a elas. É por essa razão que devemos atentar para a qualidade dos atos que praticamos, pois nossas disposições morais correspondem às diferenças entre nossas atividades. E não será desprezível a diferença se, desde a nossa infância, nos habituarmos desta ou daquela maneira”[5]. Somente com o Cristianismo a noção de dever é introduzida para resolver o problema ético[6]. Tudo quanto pertencer às intenções invisíveis, sendo, porém, visível aos olhos de Deus, deve ser julgado eticamente. Essa noção instaura um novo problema a ser resolvido: se o sujeito moral é autônomo e encontra em sua consciência as normas que irão orientar sua conduta em direção à virtude, estando, portanto, infenso às interferências externas, como se poderia falar de comportamento ético orientado por um dever que, em última instância, seria ele próprio exterior à consciência individual?  A resposta a essa indagação é fornecida por Rousseau e Kant, no século XVIII, e, posteriormente, por Hegel.
Kant
À idéia, cara a Rousseau, de que os homens nascem puros e bons, pervertendo-se por influência da sociedade, Kant contrapõe a noção de que, por natureza, os seres humanos são egoístas, destrutivos e cruéis. Em razão disso, para se tornar ser moral o homem necessita do dever, sendo este uma imposição que a razão prática, ou seja, a liberdade instauradora de normas e fins éticos, atribui a si mesma, obrigando-se a cumprir as normas que ela mesma criou. Tem-se, dessa forma, a expressão da lei moral que não está presente em um ser transcendente, exterior ao homem, mas se impõe ao ser humano em razão de sua dupla condição de ser moral e ser natural, sujeito também às regras da causalidade natural. Como esta faz com que os seres humanos ajam por interesse, levando-os a utilizar pessoas e coisas como meios para a satisfação dos seus desejos, a razão prática impõe ao indivíduo o domínio da sua porção natural, libertando-o dos apetites e impulsos e revelando a sua verdadeira natureza. Nesse contexto, ser livre não consiste na satisfação irracional dos apetites, impulsos e paixões, mas na observância do dever, uma forma que ordena de maneira incondicional a ação humana, constituindo, na linguagem kantiana, um imperativo categórico, uma lei moral interior.[7]  
Como bem explicita Kant na Metafísica dos Costumes: “a virtude é a força das máximas de um ser humano no cumprimento do seu dever. Força de qualquer tipo pode ser reconhecida somente pelos obstáculos que pode superar. [...] Esses obstáculos são inclinações naturais que podem entrar em conflito com a resolução moral do ser humano”[8]. Kant faz referência ao dever de virtude, sendo esta uma “força moral da vontade”.[9]  No entanto, existem certas condições subjetivas da receptividade do conceito de dever que são experimentadas pelo indivíduo: o sentimento moral, a consciência, o amor pelo próximo e o respeito por si mesmo. Tais condições não são adquiríveis pelo sujeito, constituindo antes predisposições mentais para a aquisição do próprio conceito de dever.  Quais seriam, portanto, as máximas morais a serem seguidas? 1) Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza; 2) Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio; 3) Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.
Os problemas da relação entre natureza humana e cultura e suas implicações na vida ética não são resolvidos pela filosofia kantiana, sendo discutidos por Hegel. Essa discussão, no entanto, escapa aos propósitos desse artigo. No entanto, a aplicação das máximas kantianas à vida acadêmica  constituiria o valor fundante não apenas de uma ética docente, mas de um ethos da atividade acadêmica, considerada em seu todo, e das relações humanas no âmbito da universidade, o que, em certo sentido, resulta num truísmo. Honra e prestígio, seja na vida pública, seja na vida acadêmica, são categorias que apenas têm razão de ser quando dispostas e adquiridas em benefício da coletividade. Da mesma forma que o homem político não se pode guiar de maneira exclusiva por suas convicções e paixões, assumindo as responsabilidades pelas consequências de seus atos, as instituições de ensino, ou, melhor dizendo, aqueles que compõem os corpos docente, discente e administrativo dessas instituições, não poderão sacrificar sua esfera de liberdade às ingerências externas. No momento em que as instituições universitárias se transformam em palco para a ação política descompromissada com a sua finalidade primeira, a saber, a comunicação do saber sob a égide da prudência, ferem-se de morte a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Destrói-se o dever ético do ser humano para consigo mesmo e para com os outros e, o que é mais lamentável, destrói-se a íntima união do respeito e do amor na amizade, razão de ser do sentido de comunidade que caracteriza a vida acadêmica."


[1] OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; OLIVEIRA, Luis R. Cardoso de. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 73.
[2] Ibidem. p 78.
[3] Consulte-se: MERIMÉE, Prosper. Colomba et autres nouvelles. Paris: Librairie Générale Française, 1983.
[4] OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; OLIVEIRA, Luis R. Cardoso de. 1996, p. 85.

[5] ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 41.
[6] CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2001, p. 344.
[7] Ibidem. p. 346.
[8] KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 238.
[9] Ibidem. p. 248.

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